sexta-feira, 28 de dezembro de 2018


O ESCANÇÃO E O SERVIÇO DE VINHOS

 Extrato do meu livro "Manual do Barman e do Escanção"

“Escanção” é o vocábulo adoptado para designar o responsável pelo serviço de vinhos e ele corresponde ao até aqui designado, “chefe de vinhos” em Portugal e “sommelier”, no Brasil.
É a retoma de uma palavra portuguesa, quase posta de parte, em boa hora integrada ao vocabulário hoteleiro, onde tão necessária se torna a nacionalização.
Por nos parecer, bem actual, transcrevemos aqui o que dissemos no nosso livro “Manual de Restaurante e Bar” sobre este profissional. Parece-nos que, pelo facto de em certos momentos do seu trabalho usar de conhecimentos análogos aos do barman, será de muito interesse consultar os conselhos que damos a este, no Capítulo “O Bar e o Barman”, sobretudo no que diz respeito, aos cuidados a ter com o corpo e com o vestuário.

 

ESCANÇÃO, CHEFE DE VINHOS (SOMMELIER)

Auxiliar e substituto dos chefes de mesa, o “escanção” necessita, para o bom desempenho das suas funções, de todos os conhecimentos do barman e dos empregados de mesa, aliados a um grande poder de insinuação,  necessário a um bom vendedor.
Sabendo-se que o lucro das refeições é sempre diminuto, é dos vinhos, licores e coquetéis que se espera obter o necessário rédito para ajudar a manutenção do estabelecimento.
Uma vez tomado conhecimento do cardápio escolhido pelo cliente, o escanção deve dirigir-se-lhe sempre como se estivesse tratando com um gourmet, sugerindo o vinho que, supõe, irá melhor com os pratos seleccionados. Se o cliente o é de facto, apreciará a maneira como o estão a servir; se não o é, sentir-se-á lisonjeado por ser tomado como tal, sendo o resultado desse sentimento, na maior parte das vezes, a venda de uma garrafa de vinho que não estava prevista. Com esse gesto simples, de rotina, serão atingidos dois objectivos de capital importância para qualquer restaurante: satisfação do cliente e aumento de receita.
O escanção deve, pois, estar sempre presente, sugerindo e servindo sem precisar ser chamado.
O serviço de vinhos mal feito (copos vazios, vinho servido fora de tempo ou a temperatura inadequada, etc.) indispõe o cliente pela falta de atenção que revela, levando a referências pouco lisonjeiras sobre o serviço em geral, do que muitas vezes os restantes empregados não têm culpa.
Deve haver da sua parte uma fiscalização constante e uma observância estritade tudo o que lhe diz respeito, pois o vinho tem numa refeição um papel muito mais importante do que simples auxiliar da deglutição.




O SERVIÇO DE VINHOS

Desde longo tempo se considerou necessário que uma diferente qualidade de vinho acompanhasse cada prato, tendo em conta a sua composição. Para isso, estabeleceu-se a seguinte ordem:

                                    Vinhos do Porto, Madeira, Jerez, etc.
Acepipes,  com     -  Vinhos de mesa brancos, secos, verdes ou maduros.
                                    Muito raramente um vinho generoso.
Consommés          -  Vinho generoso seco.
Sopa                  -  Geralmente não se serve vinho  com a sopa, excepção feita para    sopas de peixe ou de marisco, que exigem um branco seco.
Mariscos ou Peixes:
   Cozidos – Vinho de mesa branco adamado, (doce).
   Gratinados ou Assados – Um vinho verde ou maduro (seco).
   Caldeiradas ou idênticos – Um vinho tinto não muito carregado       (verde ou maduro)
Entradas                                   - Vinhos de mesa tintos  ou palhetes, verdes ou maduros.
Assados ou Caça      - Vinho de mesa tinto (velho se possível). De preferência   espumante natural, seco ou bruto.
Queijos                     - Vinho de mesa tinto, velho; Porto ou Madeira.
Doces                        - Vinhos espumantes, generosos ou licorosos (meio doce ou doce).
Frutas                          - Normalmente, a fruta já tem, por si, acidez que lhe baste para o paladar.
Salvo casos especiais de frutas como o ananás, morangos, etc., em que um vinho licoroso vai bem, não acho que se devam servir vinhos  com as frutas. Aliás, estas são já um complemento ou transição para o serviço seguinte, o dos cafés e
licores.

O vinho espumante (ou o champagne) é o único que se pode servir com todos os pratos, do início ao fim de uma refeição, excepção feita para o queijo.
Para este, o vinho tinto, um bom tinto velho, é ainda o ideal, apesar de se citarem os licorosos para esse efeito.
O vinho sabe melhor quando servido em copos finos. Do mesmo modo, os vinhos velhos, os vinhos com categoria reconhecida e os de sobremesa, devem ser sempre servidos na garrafa de origem, tal como estiverem na cave. Para esse efeito, existem cestos especiais, onde as garrafas são colocadas com cuidado; nada de movimentos desnecessários, nada de safanões ou golpes. Só em casos muito especiais, de vinhos com demasiado pé, ou por outra razão forte, se deve proceder a decantação.
A mudança dos vinhos, para frascos de cristal, chamados “decanters”, muito generalizada até há pouco é, um erro, pois faz o vinho perder grande parte de seu aroma, do seu espírito e da sua qualidade. O verdadeiro sucesso do vinho está na sua vetustez, não no envólucro que o apresenta.

TEMPERATURA DOS VINHOS

Para que os vinhos possam dar ao paladar o prazer desejado por aqueles que os tratarem desveladamente, deve haver o máximo cuidado na última parte dessa longa peregrinação iniciada nas dornas.
Nisso, a temperatura dos vinhos desempenha papel principal. Assim, os vinhos tintos maduros, os generosos, licorosos e as aguardentes servem-se à temperatura ambiente. Os vinhos de mesa brancos, rosés, palhetes ou tintos verdes, servem-se ligeiramente frios. Os vinhos de mesa doces e os espumantes naturais, servem-se gelados.
O gelo nunca deve, seja sob que pretexto for, ser adicionado ao vinho; fazemos evidentemente ressalva, para os casos de preparação de cups, puch ou misturas similares, para os quais se devem escolher vinhos menos nobres embora bons.
A maneira mais fácil de levantar um pouco a temperatura dos vinhos é colocá-los numa estufa, ou envolver as garrafas num pano com água quente.

ABERTURA DE UMA GARRAFA DE VINHO DE MESA

Para abrir uma garrafa de vinho, deve-se começar por cortar a cápsula de estanho, junto à parte inferior da saliência que todas as garrafas têm perto da boca. Com um guardanapo lavado, limpa-se a sujidade que normalmente se encontra entre a cápsula e a rolha.
Insere-se o saca-rolhas na cortiça, bem ao centro. Faz-se com que o saca-rolhas, através de voltas sucessivas, entre tão fundo quanto seja possível. Procura-se sacar a rolha de um só golpe, com confiança e elegância. Nada de gestos nervosos nem sacolejos à garrafa, os quais agitam desnecessariamente o vinho.
No caso de vinhos velhos, sacolejar é estragar completamente a bebida, pois o pé assente no fundo mistura-se ao líquido.
Depois de retirar a rolha, limpa-se bem o gargalo e coloca-se a garrafa na mão com o rótulo para fora.
Ao servir, mostrase o rótulo ao cliente. Nunca se deve enrolar a garrafa em guardanapos no momento de servir. Noutros tempos, o escanção anunciava, em voz alta, o vinho que estava a servir. Se isso for julgado necessário, pode ser feito.

ABERTURA DE UMA GARRAFA DE CHAMPAGNE

Se a garrafa é apresentada num balde, deve estar na posição vertical, com gelo bem apertado em toda a volta. É até conveniente cobrir o topo com gelo picado.
Retira-se a garrafa do gelo e envolve-se num guardanapo, para evitar que escorregue na mão. É bom ter em conta que a pressão numa garrafa de champagne anda à volta de 8 atmosferas. Quando se retira a garrafa do gelo, o vidro, que é grosso, está


contraído pelo frio. O contacto da mão quente pode, perfeitamente, originar expansão do vidro no ponto de apoio. Nestas condições, a garrafa pode rebentar.
Ainda que as possibilidades de isto acontecer sejam remotas, é bom ter conhecimento destes factos, para nunca se ser apanhado desprevenido.
Depois de retirar a cápsula, segurar a garrafa firmemente num ângulo aproximado de 180o (posição dos ponteiros de um relógio ao marcar 10 horas e 25 minutos) e desapertar os arames que seguram a rolha. Mantendo o ângulo da garrafa, sacar a rolha lentamente, tendo o cuidado de a segurar para não atingir qualquer dos convivas ou colegas de serviço. Depois de sacar a rolha, manter o ângulo da garrafa por aproximadamente 5 segundos, tempo necessário para que a pressão se normalize com a do exterior.
Se a garrafa estiver direita no momento de tirar a rolha, o gás sairá em turbilhão, arrastando consigo uma boa parte do vinho e, em vez de uma bebida, teremos conseguido um banho de champagne.
Limpar a boca da garrafa com um guardanapo limpo. O vinho está pronto para servir.
O champagne deve ser servido com dois movimentos.
Primeiro, deitar vinho no copo até que a espuma atinja o bordo deste, sem o deixar transbordar.
Deixar a espuma desaparecer e, então, servir a bebida até 2/3 do volume total do copo.
Ter o cuidado de não servir muito rapidamente, pois nesse caso o vinho transbordará mesmo.

COMO SERVIR VINHOS

Vários cuidados devem ser observados quando se faz o serviço de vinhos.
Daremos a seguir, uma pequena lista de conselhos ao escanção, sobre este serviço:
-   Os vinhos devem ser trazidos para junto da mesa do cliente, antes de serem necessários, dando a este a possibilidade de os ver. Os que devem ser servidos gelados, serão mantidos em baldes com gelo.
   O anfitrião pode provar os vinhos, mas o escanção também pode fazer esse serviço, rectificando se necessário.
-   O serviço de vinhos deve ser sempre feito com a mão direita e pelo lado direito do conviva.
-   Para servir aperitivos ou digestivos, as garrafas devem ser trazidas para a mesa e as bebidas, servidas à vista do cliente.
-   Os copos, de vinhos, de aperitivos ou de licores, nunca devem ser cheios até ao bordo.
   O copo de vinho só deve ser cheio até metade, para as senhoras, e até 2/3, para os homens.
-   O cesto foi criado para os vinhos velhos, com o objectivo de manter a garrafa deitada, tal como sai da garrafeira, para que o pé se não misture ao vinho.
  Não adianta usar o cesto, se não houver antes o cuidado de não agitar a garrafa.
-   Alguns vinhos velhos com excesso de pé podem ser decantados. O objectivo é retirar o vinho límpido da garrafa, deixando nesta o sedimento. Vinhos decantados são servidos em recipientes de cristal.


Não devem usar-se filtros para decantar vinhos.
Os vinhos brancos, não precisam ser decantados, pois normalmente não têm sedimento ou pé.

A LISTA DE VINHOS

A lista ou carta de vinhos é uma grande ajuda para o vendedor. Deve estar claramente elaborada e ser mantida limpa.
Os vinhos devem estar inscritos na lista, pela sequência normal do serviço durante a refeição.
O vinho deve ser sugerido e a lista apresentada, logo que o cliente acabou de escolher a comida.
Este é o momento psicológico para a venda do vinho.
A lista deve ser apresentada naturalmente, sem grande ostentação, mas com uma pequena sugestão, se for caso disso.
O escanção deve ter o cuidado de sugerir e servir sempre bons vinhos. Só há um caminho para quem deseje manter o negócio florescente: servir bom.
Quando o cliente tem confiança nos que o aconselham, aceita as suas sugestões e, por norma, um cliente satisfeito é um cliente fiel.
Nunca se deve decepcioná-lo e servi-lo sempre dentro das suas necessidades, é assegurar a sua constância e a sua amizade.
Para atingir essa finalidade, o escanção deve pensar que, na nossa época, o homem não age só em função das suas necessidades primárias, mas que ao consumo de determinado produto alia um conjunto de outras necessidades, entre as quais o conhecimento e a cultura. O bom escanção, como o bom barman, deve saber conversar e, sobretudo, saber conversar sobre o vinho. Levar ao cliente interessado algumas bases deste lado do "savoir vivre", é fazer um adepto e, um amigo.

SABER CONVERSAR SOBRE VINHO

Para se poder conversar sobre vinho, deve-se, antes de tudo, saber algo sobre vinho.
Estudá-lo, prová-lo, conhecê-lo portanto. Ao fazer-se a degustação, devem-se analisar as várias sensações que o vinho provoca, o que exige uma certa concentração.
O resultado dessas sensaações, deve ser arquivado na memória, para as podermos analisar e transmitir, no momento em que desejarmos falar sobre vinho.
Por outro lado, uma conversa exige termos convenientes ou apropriados. Vamos proporcionar alguns termos que se podem utilizar quando se desejar conversar sobre vinho:

-   Sobre a constituição do vinho – (O seu corpo em relação ao paladar).
Se desejamos dizer bem, usaremos termos como: encorpado, sólido, forte ou vigoroso, de categoria ou de qualidade, acabado (“É um vinho acabado!”), cheio, leve, substancial, aveludado, macio, delicado, fino, apetitoso, inteiro, puro.

Para significar que o vinho não é bom, podemos dizer, de acordo com as circunstâncias: fraco, pobre, frouxo, pouco encorpado, aguado, pastoso, áspero, acerbo, adstringente, desiquilibrado, pesado, carrascão, travoso, rascante.



-   Sobre a cor do vinho 
Se desejamos dizer bem: bela, clara, ambarina, brilhante, sumptuosa, cintilante, rubi ou rubica, purpúrea.

Para dizer mal (se for caso disso): turva, toldada, murcha, desbotada, carregada.

-   Sobre a vinosidade (ou teor alcoólico)
Para gabar o vinho, podemos dizer que é: vivo, nervudo, generoso, forte, capitoso, espirituoso.

Se desejamos demonstrar desagrado, diremos: brando, fraco, frouxo, frio, vulgar, pastoso.

-   Sobre o conteúdo de açúcar
Quando satisfaz, diz-se: seco ou doce, suave, delicado, licoroso, sedoso.

Quando é desagradável, diz-se, buscando o termo adequado: áspero, pastoso, insípido, adocicado.
  
-   Sobre o bouquet ou aroma 
Quando este agrada: perfumado, “fruité” (com sabor a fruto), fino, aromático, oloroso.
Quando não agrada: vulgar, sensaborão, desagradável, “bouchonné” (sabor a rolha).

-   Quando o vinho está estragado, diz-se: azedo, avinagrado, voltado, toldado, passado.

Tentámos resumir os elementos essenciais, permitindo ao profissional desejoso de evoluir, encontrar o mínimo necessário à sua aprendizagem. Não tivemos a pretensão de escrever para os mestres.
Esses encontrarão muitas lacunas neste nosso trabalho. Um manual no entanto, não é um tratado.
Para os que se iniciam na profissão, vai toda a nossa simpatia. Já percorremos o mesmo caminho, estando, portanto, aptos a saber o que lhes será útil, e o que vai ao encontro dos seus anseios.
Mais tarde, os seus conhecimentos serão aprofundados através do recurso a outras fontes. Nessa altura, esperamos que os seus conhecimentos possam ser transmitidos aos que lhes sucederem, com a mesma boa vontade que nos levou, a escrever este livro.
E digamos como Bossuet: “Le vin a le pouvoir de remplir l’âme de toute vérité, de tout savoir et philosophie”.
Traduzindo: “O vinho tem o poder de encher a alma de toda a verdade, de todo o saber e de toda a filosofia”.

Esperamos que assim seja!...



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